A Tia Aninha - cap 2

Foi numa dessas casas hospitaleiras que a encontrei um dia (antes a não encontrasse!),
rodeada de fedelhos boquiabertos e ofegantes. Interessou-me aquele rosto enrugado e
macilento, em que julguei descobrir vestígios de um passado cheio de peripécias e vicissitudes.


 

A velha boêmia simpatizou comigo, pelo que, aliás nenhum merecimento me atribui, porque ela -
coitadinha! - simpatizava com toda a gente. Nas suas palavras, nos seus gestos e nos seus
olhares, que brilhavam ainda através de duas pequeninas frestas esquecidas entre as
pálpebras, nunca ninguém descobriu a menor prevenção contra pessoa alguma.
 

Não pertencia ao tipo, muito comum no Brasil e creio que em toda a parte, da velha parasita,
que anda de lar em lar, de alcova a alcova, trazendo e levando enredos, novidades e mexericos,
dando fé do que se passa em casa de Fulano para chalrar em casa de Beltrano, adulando as donas e
seduzindo as donzelas, embiocada e devotada.
Como lhe mentissem, dizendo que eu era romancista, a tia Aninha me declarou, sorrindo, que a sua vida tinha sido um verdadeiro romance, e essa declaração me levou (antes não levasse!) a revolver aquelas cinzas, curioso de se embaixo delas crepitavam ainda as derradeiras brasas.

Crepitavam; mas a história da tia Aninha era vulgaríssima, sem incidentes excepcionais nem
grandes lances e surpresas do acaso. Se ela imaginava que aquilo daria um romance, não fazia mais do que fazem todos os indivíduos para quem o mundo não foi um mar de rosas. Não há criatura infeliz que não esteja persuadida que da sua existência se faria a mais interessante das novelas.

Nascera a tia Aninha pouco depois da independência. Era filha única de um negociante
português, sofrivelmente apatacado. A sua vida correu pacifica e serena até os vinte anos. Foi nessa idade que o seu coração falou: ela apaixonou-se por um caixeiro do pai.

A mãe que desejava ser sogra de um príncipe, descobrindo um dia esses amores, que aliás
duravam, havia já dois anos, foi ter com o marido e disse- lhe tudo.

O negociante enfureceu-se; pôs imediatamente no andar da rua o mísero subalterno que se
atrevia a levantar os olhos tão alto, e andou por o todo bairro comercial a pedir de porta
em porta que ninguém o arrumasse. O rapaz ficou, portanto, incompatibilizado com a praça,
e resolveu partir para o Rio de Janeiro, procurando no Sul a fortuna que lhe fugia no Norte. Partiu.